A tela “São Miguel e as Suas Almas” está exposta na Igreja de Santo Antão em Évora. Corresponderá a um trabalho relativo à fase final da vida do poeta, escritor e cronista Jerónimo Corte-Real , e pelos vistos também pintor, ao estilo dos grandes espíritos do renascimento.
Jerónimo era irmão de Bernardo Corte-Real, o último alcaide de Tavira da mesma família de Vasco Anes da Costa, o primeiro Corte-Real, que foi o primeiro alcaide tavirense dentro desta família e era filho de outro Vasco Anes neto do primeiro, que também foi alcaide. Terá nascido na Ilha Terceira, como os irmãos, ou em Lisboa, segundo outras fontes. Tal como eles, teve acesso a uma educação bastante diversificada, e a sua obra aproxima-se muito da obra de Luís de Camões, apesar de Jerónimo ser dez anos mais jovem e ter sobrevivido no Portugal já dominado pelos Felipes. Em criança, poderá ter tido contacto a título póstumo com a tragédia dos tios Gaspar e Miguel, que se perderam no mar em viagens de reconhecimento do novo mundo.
A epopeia, mas também a tragédia, estão presentes na obra de Corte-Real, nomeadamente a sua versão pessoal da tragédia quinhentista d‘O Naufrágio do Sepúlveda, mais conhecido por ser o episódio que inicia a súmula de tragédias marítimas compilada no século XVIII conhecido por História Trágico-Marítima e recontada por vários autores portugueses, sendo o primeiro de entre eles Jerónimo Corte-Real.
Terá participado na batalha de Alcácer Quibir, de onde foi resgatado, radicando-se em Évora, no morgado do Vale do Palma, que ele próprio terá instituído. É dele talvez a mais notável obra visual patente na Igreja de Santo Antão, situada no centro de Évora – a praça do Giraldo – a tela a que fizémos referência.
Pensa-se que a obra foi concebida no período final da sua vida, quando vivia em Évora, num Portugal que havia perdido a sua independência, a iniciar o princípio da passagem no purgatório do qual iria sair apenas em 1640.
Tendo em conta esse facto histórico, mais o de ter participado na batalha fatal, estaremos perante uma obra em que Jerónimo terá tentado, através da sua criação, expiar os seus pecados e talvez os da própria nação, visto o jugo castelhano ser visto como um castigo da Justiça Divina por século e meio de explorações e ambições nem sempre frutíferos por meio mundo de África à China.
O quadro transporta-nos evidentemente para uma cena tirada do Apocalipse, em que o arcanjo São Miguel lidera os exércitos do Céu contra os adoradores da besta e do falso proveta (o “dragão”, ou a serpente, Satã). No topo da tela está o arcanjo. Segura uma pena, sinal de que se irá proceder ao julgamento das almas. Lá em baixo, e mais próximo dos espectadores desta obra imagética, vários humanos, de ambos os sexos, nus aparecem na parte dianteira da tela, envoltos em chamas. A proximidade dessas figuras com o espectador dá a impressão de “querer sair da tela”, ou de que pertence a este grupo. Com a mão direita, o arcanjo Miguel preside a toda a cena e aponta na direcção de uma dos seus membros alados, quiçá, o Céu !? Entre elas, algumas envergam coroas, outros mitras e um mesmo a tiara papal – referências ao “falso profeta” do Apocalipse escrita pelo apóstolo João em Patmos !? Essas almas “condenadas” que estão no centro da chama (o “Inferno”) não parecem estar cientes da chamada do anjo para o seu julgamento. Apenas as almas lá do fundo, na realidade, no “meio do quadro”, de acordo com o efeito das perspectiva, parecem cientes da presença do anjo e erguem os braços em gestos de súplica. As cabeças coroadas nem parecem estar cientes da presença do anjo e da chegada do fim dos tempos.
Para os portugueses, a estadia no purgatório irá ser longa. Serão sessenta anos de cativeiro com os Felipes Habsburgos como nossos carcereiros. Apenas no 1º de Dezembro de 1640 teríamos expiado todos os nossos pecados e foram abertas as portas do purgatório aos portugueses, finalmente livres para poderem se mostrarem ao mundo sob o comando de um rei português !
A obra poética Auto dos Quatro Novíssimos do Homem deverá remontar à mesma época da concepção da tela e nela Jerónimo Corte-Real indaga em quatro autos num total de pouco mais de 20 páginas: – 1. O que é a Morte ? 2. O que é o juízo ? 3. O que é o inferno ? 4. O que é o paraíso?