O Túmulo jacente de Filipe, o Audaz

A arte flamenga segue, rés vés, aquilo que eram as tendências da arte gótica internacional dos tempos medievos, com túmulos com estátuas jacentes, e esculturas em relevo nos lados do túmulo. A estátua jacente pretendia dar uma ideia do repouso eterno do falecido, normalmente com a indumentária e motivos esculpidos de acordo com o estatuto que a pessoa tivera em vida, da forma como quisessem ser despertados no dia do Juízo Final. Um rei com ceptro, coroa e manto, um militar com armadura e espada, um jurista ou douto com um livro, um clérigo com um rosário ou um báculo. Estas estátuas podiam ser acompanhadas por baixos-relevos e efígies nas faces laterais com heráldica, motivos vegetalistas, ou inscrições em entalhe.

O túmulo de Filipe, o Audaz (Philip, the Bold) (1342-1404), duque de Borgonha e fundador de um ramo da dinastia dos Valois em terras da Flandres, encontra-se no Mosteiro dos Cartuxos (Chartreuse) de Dijon, actualmente em França. O túmulo e as suas efígies foram executados por Klaus Sluter, autor também de outras obras no mesmo mosteiro, como o Poço de Moisés e as esculturas do pórtico de entrada. A actual escultura jacente é uma reconstituição do século XIX do original, sendo que o original foi destruído durante a Revolução Francesa, quando movimentos iconoclastas imperaram. O duque preferiu que a sua imagem para a posteridade fosse de um penitente, pois além da espada, da coroa e do manto, encontra-se representado do peito para baixo envergando uma veste dos monges da ordem de São Bruno, vulgarmente conhecidos por Cartuxos. Para além disso, representações de frades penitentes (pleurants) aparecem entre colunetes e arcos góticos nas faces laterais do túmulo. Sluter iniciou a obra, mas foi o seu sobrinho Claus de Wervre que a terminou.

O contexto das motivações por detrás desta obra entende-se devido à concepção de além-morte de finais da era medieval, sendo que o Purgatório foi considerado como sendo um lugar físico a partir de fins do século XII . As almas sem mácula eram investidas ao Céu após o falecimento, mas as que ainda necessitavam de purgar os seus pecados passariam por um espaço “intermédio” para remissão dos pecados.

Através da penitência operada por agentes da igreja após a morte acreditava-se que o processo de ascender do Purgatório para o Céu seria acelerado. Daí a presença dos pleurants nos lados do túmulo de Filipe. Por outro lado, o facto de o túmulo estar situado dentro da câmara de oração dos monges é outro factor a favor desta ideia, da forma como que relembrava aos monges da ideia de rezar pela penitência do duque. As estatuetas dos monges em penitência no lado do túmulo junto à base, como que emulam uma procissão, estando à cabeça o monge aspergindo água benta, seguido por dois coristas, um penitente com um crucifixo, seguido por clérigos, com um bispo entre eles. Seguem-se figuras encapuçadas detendo um rosário ou um livro. A cena dá toda uma ideia de movimento desde o princípio até ao fim. Para dar mais vivacidade a toda a cena algumas das figuras como que interagem entre si, havendo situações em que os personagens estão frente a frente, outras mantêm gestos de súplica, com as personagens à cabeça como que querendo ganhar tridimensionalidade como que saindo do plano da cena e estabelecer um movimento circular no sentido dos ponteiros do relógio.

Se bem que representação com estatuetas antropomórficas de corpo inteiro em túmulos não seja nova (e.g. túmulo de São Luís IX em St. Dennis). O que é notável no túmulo do duque Filipe é a forma como o todo da cena da “procissão” das estatuetas alcança um realismo ou vivacidade digna de uma cena de teatro. O filho de Filipe, João, o Sem-Medo (Jean sans-Peur) também possui um túmulo com estatuetas penitentes, seguindo o modelo de Sluter.